O Segundo
Sexo , de Simone de Beauvoir, é sem dúvida alguma uma das principais obras de
referência nos estudos sobre mulher e relações de gênero. Publicado
originalmente na França, em 1949, quando a Europa ainda se recuperava das
feridas abertas pela Segunda Guerra Mundial, o livro é um amplo tratado sobre a
“questão da mulher” na perspectiva existencialista. Apresentado em dois
volumes, faz a crítica, no primeiro, ao determinismo biológico, às abordagens
psicologizantes e ao materialismo histórico, argumentando que mulher é uma construção
social, historicamente determinada, construída no pensamento ocidental como “o
outro”. Iniciado com a famosa frase, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, o
segundo volume analisa como se dá esse “tornar-se” na França do pós-guerra, e
como se manifesta a subordinação da mulher nesse contexto.
Note-se,
porém, que em O Segundo Sexo Simone de Beauvoir não poupa críticas sequer às
feministas da época. Mas não hesitou em declarar-se “feminista” na década de
70, até “feminista radical”, como referiu em entrevista ao LeMonde:
“eu sempre disse que era
feminista na medida em que feminismo, para mim, significa que eu reclamo uma
identidade de situação entre o homem e a mulher, e de igualdade radical entre o
homem e a mulher”.
Engajando-se
avidamente no Movimento de Libertação da Mulher da França, assinou, inclusive,
o manifesto em favor do aborto que causou grande controvérsia nos meios acadêmicos
franceses.
Já em O
Segundo Sexo, Simone aborda questões bastante polêmicas ainda hoje, a exemplo
da desconstrução do “mito da maternidade” como destino feminino. Nessa
perspectiva, Simone de Beauvoir contrapõe-se à antropóloga americana Margaret
Mead, cuja obra, Macho e Fêmea, da mesma época, faz o “elogio da maternidade”,
com base numa perspectiva liberal, culturalista.
Não foi,
então, por acaso que O Segundo Sexo teve maior impacto, sendo traduzido para
mais de 30 idiomas e publicado em vários países, constituindo-se, ainda hoje,
em alvo de críticas e fonte de reflexão e inspiração feministas por todo o
mundo.
De fato,
apesar de ser escrito para a geração de mulheres que vivenciou a Segunda Grande
Guerra, O Segundo Sexo fala também às gerações posteriores, mantendo-se
bastante atual em grande parte de suas considerações e análises. Isso não
implica em dizer que, nessas últimas cinco décadas, o pensamento feminista não
tenha avançado significativamente. Ao contrário, desde a retomada do Movimento
nos anos 60 e, mais particularmente, a partir de meados dos anos 80, novas
formas feministas de pensar e analisar as relações de gênero e a condição
feminina têm tido lugar.
Em O
Segundo Sexo, não poderia ser diferente, Simone foi abundante e múltipla: nas
formas de expressão escrita – filosofia, literatura de ficção (romances,
contos), ensaios, manifestos políticos, memórias; nas temáticas – em que o ser
mulher e ter uma idade permeia trajetórias ou tangencia essa produção toda; e
até, enquanto esteve viva, nos seus exemplos pessoais, no reflexo das
representações do seu “eu” vanguardista no nosso quotidiano.
Os
trabalhos, aqui, diretamente sobre O Segundo Sexo e/ou outras produções de Simone
de Beauvoir, que constituem a Parte I deste livro, ecoam essa multiplicidade
exatamente na diversidade de enfoques: vão do paradigma filosófico subjacente
às suas práticas de vida e de expressão teórico-ética ao confronto com as
teorias e a crítica feministas (na conferência de Heleieth Saffioti e no texto
de Raimunda Bedasee), às comparações possíveis e diretas com outras escritoras,
sua contemporânea Margaret Mead e nossa contemporânea Camille Paglia, passa
pelo debate específico sobre a dupla questão radical do aborto e da violência
doméstica até interpelar, ainda, a mestra sobre questões de gênero e idade e despedir-se
com carinho.
Valendo registrarem-se,
ainda, as diferenças de expressão e “temperatura” afetiva e geracional nas
referências das diferentes autoras: algumas a “Simone”, outras a “De
Beauvoir”...